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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O evangelho segundo um colorado

O churrasco que aconteceu na casa de uma amiga naquele sábado acabou me ajudando a não pensar no assunto tanto quanto eu faria em circunstâncias normais. Entre paleteadas na costela e goles de cerveja, volta e meia sentia um calafrio na espinha e lembrava da gravidade do momento. Me sentia culpado por não estar gastando cada minuto do meu tempo pensando no jogo contra o Barcelona. Aos pensamentos, aos que perguntavam, a maioria em tom de corneta, apenas repetia o mantra que contrariava toda uma trajetória de torcedor: “vai dar, vai ganhar”.


No entanto, bastou eu sair do churrasco, no início da madrugada de domingo, para ficar absorto na loucura da expectativa. Dirigindo, falava em voz alta: “vai dar, vai ganhar”. E botava a cabeça pela janela e gritava alto para o capim e para os outdoors, quase na ponte de Cachoeirinha: “vair dar, porra”. Que ano louco este de 2006. Com as outras pessoas, tentava aparentar tranqüilidade. Temia que me internassem desde a fase de insanidade completa na final da Libertadores. Quando cheguei em casa, meu irmão estava ouvindo a Guaíba, e o pai PEDRO DE OXUM afirmou que não tinha outra, era Colorado na cabeça. Não satisfeito com a tensão da situação, fiz uma coisa pouco recomendável: deitei no sofá e coloquei o DVD da Libertadores. Fiquei em chamas plenas e profundas. Dormi e acordei às cinco, achando que o tempo estava de brincadeira, se palhaçando sem andar uma vez. Fui para a cama e, do nada, despertei. Tudo quieto. “Mas que diabos, perdi o jogo. Acabou, arrebentou tudo”. O relógio apontava 8h15.

Para manter a tranqüilidade superficial tentava não avaliar o que estava acontecendo. De repente, é o teu time – aquele mesmo da fumaceira em Belém, em 2002, o que te maltratou durante uma vida – entrando em campo com o Barcelona, para disputar o título mundial, no Japão. O mesmo torneio que era apenas uma miragem no deserto de bons resultados do Inter. Em 1988, fiquei acordado para ver PSV e Nacional. Queria ver Romário atuar. Depois de três horas vendo lutas de boxe, dormi quando a partida começou. Desde então, assisti a todos os mundiais, sempre pensando o quão triste devia ser chegar lá e perder. E nunca sequer tendo a audácia de imaginar que um dos times a entrar em campo pudesse ser o Inter.

E lá se foi a bola rolando, aquela putinha, como se aquele jogo fosse mais um entre tantos outros que eu já havia presenciado. O tempo passava e o bicho não se mostrava tão feio como anunciavam. No final, Fernandão fora, Índio sangrando, eu prevendo um bombardeio na prorrogação. De repente, num lance de velocidade absurda, Iarley pifa Adriano na cara do gol. Antes da correria fulminante pelo pátio de casa, ainda tenho tempo de questionar os deuses ao pensar “Gabiru?”.

O que senti naquela hora nunca esquecerei – e nunca vou conseguir descrever, embora vá tentar até o resto da vida -, pois era tanta raiva, alegria e leveza ao mesmo tempo que não me parecia razoável alguém poder viver aquilo. E até o final, a tranqüilidade forçada já no espaço, eu não queria mais ver nada. Havia uma tensão latente no ar, uma movimentação intensa e imperceptível nas casas, alguns mais corajosos já começavam a ganhar as ruas. Um crime do Barcelona poderia arruinar tudo. Eu não sabia o que pensar, como me comportar. Mas então a gente vai ganhar? É possível? Mas como a gente vai ganhar se a gente é colorado? Então este é o Colorado que nos falavam e a gente nunca tinha visto antes de 2006? Então foi isto que sentiram em 1975?

Havia um zebu engasgado na minha garganta, que começou a dar coices quando meu irmão caiu em soluços no sofá, ainda faltando alguns minutos. Nascido em 1988, não foram raras as vezes em que olhava para ele após uma derrota ou desclassificação e, embora não dissesse, pensava como era dura a nossa vida, e a empatia por ele era completa. Muitas vezes ele comentava: “tu ainda viu o Inter chegar em duas finais de Brasileiro, numa semifinal de Libertadores e ganhar a Copa do Brasil. Mas eu não vi nada”. Ele é o retrato fiel de uma legião de colorados, dos torcedores que representam um tempo de secura, que talvez seja a fatia mais importante da torcida vermelha de todos os tempos. Eu nunca pretendi estar feliz, já não me importava mais, mas queria ver os outros esfusiantes, bandeiras nas ruas, queria assistir à explosão da massa que estava na Goethe, dali para diante entrar no Beira Rio e enxergar em cada torcedor um brilho diferente. Queria ver meu irmão feliz, percebendo que tudo valeu a pena. Pois, entre 1993 e 2001, eu já tinha o caráter colorado formado, mas ele, uma criança, passou pelo inferno astral vermelho com bravura e tristeza insuspeitas. Naquele tempo os locutores esbaldavam-se com a nossa tragédia e a coisa mais comum era ouvir que “o Inter está fora por um gol. Novamente o Inter decepciona”. Era assim, todo dia de jogo decisivo dormíamos de cabeça inchada. Numa das primeiras vezes que meu irmão foi ao estádio, saiu de lá vendo a torcida queimar camisetas após uma desclassificação na Copa do Brasil. E, mesmo com times decentes, a lamúria não tinha fim. Já estávamos nos acostumando bastante com a idéia de que havíamos nascido para sofrer, para pagar todas as alegrias que os colorados mais antigos tinham vivido, uma espécie de culpa cristã vermelha. Nós éramos o sacrifício. E, pior, já começávamos a achar que era justo ter o nosso destino traçado com derrotas. Toda esta bagagem de angústia fez com que o Brasileiro de 2005 parecesse uma brincadeira macabra.

Quando o Barcelona chegou pela última vez, Clemer fez uma intervenção absurda e Fabiano Eller afastou para a lateral. O juiz marcou falta e Clemer amorcegou o jogo. Antes de ele dar o balão, olhei firme para a TV, já com a certeza: “são os últimos segundos da nossa vida como a vivemos até então, são os últimos pedacinhos do nosso horror”. E o juiz apitou e desde então minha vida está no lucro.

Naquele dia Porto Alegre estava assando sob 40 graus. O que fiz depois de comemorar foi deitar, com os músculos arrebentados. E passar todos os instantes seguintes com um sorriso leve no rosto. Tivessem me dado um tiro na cara, é provável que o sorriso continuasse lá, indiferente.

Saudações e parabéns aos colorados do Nação GIGANTE.

Douglas Ceconello.

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